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Este sapato tem a sua história:

A minha avó mostrou-o numa das mãos: Este sapato, tal como o vês, tem a sua história.  E contou-me que aquele sapato pertencera a António, que não conseguia esquecer. Por vezes, disse-me, deitava-se na cama com o sapatinho pequeno entre as duas almofadas: a dela e a do meu avô, que mantinha o seu lugar na cama intacto, mesmo já lá não dormindo há tantos anos. E assim adormecia, com o marido e o filho juntinho de si, imaginando-os felizes ao rirem-se dela e da sua falta de oportunismo para finalmente ocupar a cama inteira.  Uma noite, no silêncio do pequeno apartamento onde agora vivia sozinha, jura tê-los ouvido a rir. “Eram eles”, disse-me. “O teu avô e o teu tio que eu bem os ouvi”.  Quando acordou, o sapatinho continuava no mesmo lugar, entre as duas almofadas. Inexplicavelmente, dentro de um deles, repousava uma pétala de rosa amarela. “Eram as flores que o teu avô me dava sempre”, explicou-me em lágrimas. “Nos dias em que as saudades do meu António apertavam, eram rosas amarelas q

Das (i)moralidades

   Arnaldo Biscaia é um homem de bem: devoto convicto, e possuidor de valores morais superiores, Biscaia sabe-se um exemplo para muitos. Para seus filhos deseja o melhor: que Madalena encontre um marido trabalhador e Artur um bom emprego, onde lhe paguem um salário digno de um rapaz de tão esmerada educação doméstica. Na escola Arnaldo não acredita e, portanto, espera que, terminada a obrigatoriedade dos doze anos, Artur e Madalena se dediquem à procura de um bom ofício e de um bom casamento, respetivamente.    A mulher de Arnaldo, Brígida, sonha com o dia em que o seu Arturzinho irá ser chamado de Doutor Biscaia. Porém, numa família tradicional como esta, Arnaldo tem a palavra final nos sonhos familiares e assim é que deve ser.  A descrença de Arnaldo no sistema de ensino tem duas razões. A primeira é uma razão prática: os diplomados estão todos no desemprego ou no estrangeiro. Arnaldo confia nos seus conhecimentos e até já falou de Artur no café - o Gouveia garantiu que o primo

A tua história.

Lembro-me daquela noite como se fosse esta. Lembro-me do toque das mãozinhas dela, tão pequeninas, tão frágeis. Lembro-me do som da vida a querer fugir-lhe e da garra dela atrás da vida. Lembro-me do toque da buzina do Toyota Corolla do meu avô ao longo dos 5 minutos (ou foram 5 horas?) que demorámos entre o consultório da pediatra e o hospital de S.João. Memórias que resistiram, dolorosas, a todos os meus esforços desesperados de esquecimento. Durante semanas, a minha irmã lutou, guerreira como só ela, contra um vírus imundo que lhe ia corroendo o corpo e lhe tentava roubar a alma. Esse vírus imundo certamente desconhecia (só podia desconhecer, que outro motivo o poderia levar a alojar-se no corpo dela?) que a vida que ele tentava roubar era uma fonte inesgotável de alegria para muitas outras vidas. Filho da puta. Este bicho é um filho da puta - ouvi, tantas vezes, o meu pai chorar, baixinho, enquanto o bicho ia vencendo as batalhas contra a nossa pequena guerreira e a m

Maria.

Quando nasceste não choraste. Nem um pio. Nada. Também não tiveste um funeral e no dia da tua morte ninguém chorou. De resto, muito pouca gente se lembrará de ti. Foste Maria, podias ter sido Margarida ou Josefina ou Anabela. Quem saberá agora? Passaste pela vida exatamente como saíste do útero da tua mãe: em silêncio. Em silêncio assististe à sua morte lenta, ano após ano. Morreu de vez quando finalmente uma pancada do teu pai foi demasiado forte. A tua mãe também morreu em silêncio. Não sei se ela também era Maria, nunca foi importante. Sabias que ela chorava baixinho entre uma pancada e outra, mas ela ensinou-te que uma mulher, para ser mulher, tem que ser silenciosa e tu aprendeste rápido. Até parece que nasceste ensinada. Casaste em silêncio e em silêncio aguentaste o primeiro estalo, o primeiro puxão de cabelos, a primeira ameaça de morte. Casaste porque assim era esperado e porque assim poderias deixar a casa onde ainda vias a tua mãe a cada esquina. O teu pai de

Nascer de novo.

Gasto a sola dos sapatos e o chão da maternidade. Percorro mais quilómetros hoje do que em qualquer uma das mini-maratonas em que ultimamente me (es)forço para participar. Não gosto propriamente de as fazer, mas seduz-me imaginar que fujo da realidade, desta vida que não escolhi. Quando páro de correr, estou aqui e não vejo saída. Estou nesta vida que eu não quero, nesta rotina que nada tem do que sonhei para mim. Um filho! Estou prestes a ter um filho e nem por mim próprio sei olhar. Que exemplo de pai serei eu? O que tenho eu para ensinar se já lhe desejei a morte mesmo antes da vida? O que lhe vou contar sobre o amor - a minha verdade? Serei eu capaz de suportar o olhar de condescendência adolescente quando, tal como me disse o meu pai, lhe disser que o amor é uma “treta inventada por hollywood”? Quanto tempo levará até que ele desista de mim - um pai frustrado, sem amor e sem valor, que lhe deu a vida e lhe desejou a morte? “Parabéns, Pai. O seu rapaz já é um valentão!”.

O último presente.

Desembrulhei o teu último presente, meu amor. O último! Como é triste esta palavra: não me deixa esquecer que a partir de agora só a tua lembrança me resta. A tua lembrança e estas folhas onde vou deixando pedaços da minha alma. Já sei o que estás a pensar, M. - que estou a ser pessimista, que há muita vida lá fora, que eu e esta sala pouco iluminada não fomos feitas uma para a outra. Prometi-te estar preparada para seguir em frente - é por isso que me deixas, como último presente, este livro intitulado “Promete-me”? - e eu sei o quanto odeias promessas quebradas. Bolas! Que raiva de te ter perdido, M.. Que raiva desta vida desgraçada que acaba antes do tempo. Que raiva, que ódio dessa maldita doença que nunca te roubou o sorriso, mas te roubou de mim! Que raiva de ti que me deixaste, M., e que raiva dessa tua mania de que eu sou mais forte do que penso. Perdoa-me, meu amor, mas eu não quero seguir em frente. Ainda tenho a tua garrafa de whiskey favorita: está na mes

A decisão.

   Não havia, por aqueles dias, nada que ela mais temesse. Sabia que o telefone ia tocar e que isso inevitavelmente faria com que a sua vida mudasse para sempre. Não tinha porém certeza de que essa mudança lhe fosse trazer o que procurava. O problema é que, quanto mais pensava no que procurava, menos o sabia. Queria certezas e queria mudanças. As segundas não trariam, certamente, as primeiras.    O que lhe passava muitas vezes pela cabeça era que, em boa verdade, são demasiadas as vezes em que queremos algo que não sabemos onde está ou do que advém. Queremos aventura, queremos tranquilidade, queremos desafios, queremos estabilidade. Queremos ser felizes. É isso. Queremos sempre, todos, de qualquer maneira, ser felizes. O problema de tudo isto é quando achamos que a felicidade é um estado e que atingir uma determinada meta nos levará a esse estado.    Naquele dia, ela pensava simplesmente se o telefonema tão esperado a levaria a ser feliz. Ou se, pelo contrário, a felicidade esteve